Pedras, linhas sem fim, fendas, buracos. Ventres, úteros minerais. Geradores de formas, de objectos, de coisas, de substâncias. No início do século XVI, Joachim Patinir, inventaria as suas paisagens a partir do estudo atento e minucioso de pedras e de musgos, a partir dos quais compunha sublimes montanhas arborizadas. Em 1611, Philipp Hainhofer, comerciante de Augsburgo escreverá ao irmão sobre as pedras a que chama "florentinas", descrevendo-as "mit selbstgewachsenen Landschaften" ("com paisagens geradas a si mesmas"). Hainhofer, forneceu ao duque da Pomerânia, bem como ao rei da Suécia, os seus famosos kunstschranken (armários onde se coleccionavam curiosidades)[1]. Pedras como imagens, pedras com imagens. Pedras que geram paisagens imaginárias, paisagens que se geram sobre as pedras.
As pedras onde primeiro se puseram os gestos, as mãos, as imagens. Onde nasceram as imagens. Suporte, matéria, mãe. Cenário, fundo, substância, material. Das formas nascem formas. Das substâncias outras substâncias. Quantas tradições cosmológicas em que o "homem" é feito, construído, e é feito com material já existente: é uma transformação, talvez uma transubstanciaçäo, uma animação do inerte. Seja qual for o processo: divino, voluntário, aleatório, químico, alquímico, astronómico ou astrológico... Tudo está em tudo, do mais pequeno ao maior, de Plínio a Carl Sagan.
A presente exposição procura essas semelhanças, essas relações, ficciona-as, estabelece-as constantemente. Procura-as, sobretudo, na imutabilidade do mundo mineral, como Cézanne o fazia nas estruturas geológicas. Procura-o no rigor dos enquadramentos, na proximidade táctil das texturas, no uso da luz e das sombras. No pequeno e no grande, no próximo e no distante, no dentro e no fora.
Uma relação com o mundo, o mundo todo, através de cada elemento concreto, de cada fragmento concreto e individual. Cada fragmento, cada pormenor, é um vestígio, um resto de uma passagem, um indício, cada um é significativo, cada um conta histórias e cada um é o item de uma colecção.
Voltamos a Hainhofer. Kunstschranken, kunstkamera, a moda dos gabinetes de curiosidades. Mas, também, kunst, arte, artifício. Estes buracos profundos, como estas imagens, devolvem-nos a polos opostos, numa relação especular, que é, afinal, a fotografia - que é, finalmente, a própria imagem. Reflexos de luz, restos de céu, nuvens na água que ali se juntou. Sombras e luz. Na tradição paisagística do intangível.
A tradição do paisagismo, onde estes trabalhos sem duvida se inserem, é, no entanto, a do plano geral, é a contemplação da vastidão do mundo. Aqui, nestes trabalhos, é o plano aproximado que se impõe e é em cada coisa pequena que se insinua a vastidão. Poderemos ler aqui uma relação de proximidade, que me apetece dizer "feminina", de "cuidado", e não de "heróicidade" "masculina"?
É, como na pintura de Matisse, uma natureza humanizada e moderna, de gente que, quando aparece em campo, nada e faz vela e se diverte. São imagens em que a relação especular entre o mundo e a fotografia, entre o macro e o micro permite pensar a fotografia metalinguísticamente, mas que não se constroem como objectos conceptuais. E também são objectos do nosso tempo, do antropoceno: onde acaba a natureza e onde começa a cultura - a arte, o artifício?
José António Leitão, 2022
[1]Jurgis Baltrušaitis, Aberrations s.l., Flamarion, s.d., pp. 89, 96.
A suspensão do tempo
Catarina Osório de Castro realiza no Módulo a sua primeira exposição individual com a apresentação do trabalho “Devagar”.
O conjunto de imagens fotográficas a cores, de formato quadrado e dimensões variáveis, revelam um processo de investigação visual no qual a autora desmonta o espaço físico, público e privado, nos seus elementos primordiais e nos seus detalhes significativos.
As formas geométricas elementares aparecem regularmente como que num esforço de organizar o espaço e de lhe conferir significado. Pressentimos em cada fotografia a suspensão do tempo e o movimento determinado de aproximação ao assunto, com o objectivo de capturar a sua essência.
A luz solar contrastante e as sombras profundas participam também nesse processo de simplificação de formas. Elementos tridimensionais restringem-se aos seus correspondentes bidimensionais: um maciço rochoso numa praia e um monumento funerário piramidal são convertidos em triângulos…
Os elementos vegetais também surgem recorrentemente. À possibilidade de observação de uma árvore inteira, a artista contrapõe imagens que resultam de um duplo processo de observação cirúrgico: troncos de árvore seccionados revelam as suas formas elementares e permitem uma observação do seu interior, como que a procurar a sua intimidade ao mesmo tempo que mostram, nos seus anéis, o tempo longo do seu crescimento.
A oscilação entre espaço público e privado é diminuída pela construção de uma intimidade nos lugares públicos. O gesto de aproximação aos assuntos e a observação demorada e meticulosa é o método preferido pela artista para a elaboração das suas fotografias.
Também ao nível das formas assistimos a uma oscilação entre pólos. A presença recorrente da água, em diversos contextos e com diferentes plasticidades, introduz uma dimensão de fluidez e acentua a dimensão melancólica e poética do trabalho: um edredon que escorre para o chão, o cabelo de uma amiga ou a superfície ondulante de uma mesa de pedra…
A montagem da exposição, com imagens de dimensões variáveis e colocadas a diferentes alturas, convidam o visitante a uma deambulação pelo espaço da galeria, com movimentos de maior ou menor aproximação às imagens. Estas deslocações, em certa medida, replicam o procedimento da fotógrafa no momento da criação das imagens. Revelam também a sua surpresa perante o mundo que a rodeia e o encantamento que motiva a construção deste diário visual.
Bruno Pelletier Sequeira
Catarina Osório de Castro é uma caminhante incansável. O ensaio estético a que se propõe é a manifestação de uma condição simultaneamente emotiva e espiritual. A contemplação da paisagem torna-se num veículo para uma experiência que a transcende. Pensar a paisagem, para autora, é um exercício de atenção renovada. O esforço de um olhar sem preconceitos em busca de um código oculto e propicio a encontros secretos.
Catarina, fotografa o mar e a sua acção sobre o ambiente. Nas suas imagens, o mar transforma-se num símbolo dinâmico da vida. De uma vida infinita e ilimitada. É um lugar de começos, transformações e renascimentos. O compasso desordenado do mar sobre a rocha, deixa para trás um rasto de registos formais, que nos remete para um lugar comum, o corpo. Um corpus imagético masculino e feminino. Os elementos constituintes da paisagem são simbolicamente isolados com vista à elaboração de uma intensa e epopeica viagem. Uma viagem até a um tempo primordial. Às origens do Mundo.
Maria M. Gomes
Demorei algum tempo a perceber exactamente o que me movia nas imagens da Catarina. Inicialmente, convenci-me que era a qualidade da luz que ela lhes conseguia imprimir. E lembrava-me da imagem de um rapaz no topo de uma escarpa sobranceira ao mar, de costas voltadas para a câmara, o seu olhar seguramente fixo na água e uma toalha cor de areia a esvoaçar-lhe sobre o ombro nu. Lembro-me de pensar como a intensidade daquela escarpa – em teoria, a mais parda das paisagens – podia funcionar como um bom exemplo do quanto uma fotografia pode ampliar a nossa experiência da realidade. Confirmei esta teoria inicial noutras imagens que, com esta, partilhavam uma tendência assumida para a hiper-representação das texturas, para uma ampla e clara profundidade de campo, para uma criteriosa construção compositiva e mesmo para uma aproximação episódica aos protocolos, aos efeitos e aos regimes visuais da pintura.
Até determinada altura, portanto, a minha relação com as obras da Catarina tinha por base uma espécie de fascínio formal, como se o espanto que os meus olhos devolviam às suas imagens não permitisse que me apercebesse do que para lá da superfície também era retratado. Uma outra imagem, contudo, quebrou essa alienação e começou a revelar o novelo de procedimentos, relações e recorrências temáticas que subjazem à prática da Catarina e que têm nesta exposição um novo e mais profundo desdobramento. Na referida imagem, um rapaz (o mesmo?) encontra-se deitado na relva, as suas costas voltadas para a câmara, o seu tronco nu polvilhado de pequenos sinais, como um mapa sem território. A qualidade da luz, a riqueza das texturas, o rigor compositivo e a alusão pictórica mantinham-se, mas o que se revelava agora era sobretudo o grau de intimidade em que esta(s) fotografia se apoiava e o modo como a gestão daquilo que se omite e do que é dado a ver promove uma espécie de curto-circuito na valência sugestiva da imagem, impedindo que a nossa atenção se dissipe ou resolva.
O facto de esta exposição ter ganho o título de Eclipse não será propriamente causal. De facto, muito do que aqui se apresenta, e do modo como se apresenta, tem a ver com esse fenómeno de ocultação que a ideia de eclipse sinaliza: um corpo que se interpõe, um outro que se fragmenta, uma sombra que tudo tolhe e o halo das coisas que se escondem e que, nessa condição, parecem brilhar mais forte. O esconder e o fragmentar do eclipse que aqui nos traz é fruto de um olhar treinado: de um olhar que sabe recortar de uma cena tudo e apenas aquilo que nos manterá interessados. Que sabe que esse interesse depende em absoluto de uma negação, de uma recusa em declarar imediatamente os seus verdadeiros intentos, e do efeito inverso que essa recusa provoca na imaginação. Quanto menos se vê, mais se imagina, e esse é um segredo que a Catarina sabe de cor.
É, muito provavelmente, por isso que tudo nesta exposição é deliberadamente parcial, truncado, dúbio. Está tudo (ou quase tudo) à distância de dois passos, essa medida que nem é demasiado perto para que tudo se torne abstracção, nem demasiado longe para que se torne descrição. É uma distância que nos põe no lugar do participante mais do que no lugar da testemunha e que nos deixa, assim, ao comando do veículo de sentido que o conjunto destas imagens fará. Entre a vista angulosa de uma janela partida, a simetria perfeita do pelo de um cavalo, um corpo reclinado sobre um leito incerto, o pára-brisas de um carro que espelha a cidade, o olhar cego de uma figura de gesso num paço senhorial – o quadro impressivo da sugestão a recordar-nos que a narrativa é mais intrigante quando se apresenta omissa, o olhar mais agudo quando não encontra o que procura, o sol mais ponderoso quando a lua se interpõe.
Bruno Marchand