Demorei algum tempo a perceber exactamente o que me movia nas imagens da Catarina. Inicialmente, convenci-me que era a qualidade da luz que ela lhes conseguia imprimir. E lembrava-me da imagem de um rapaz no topo de uma escarpa sobranceira ao mar, de costas voltadas para a câmara, o seu olhar seguramente fixo na água e uma toalha cor de areia a esvoaçar-lhe sobre o ombro nu. Lembro-me de pensar como a intensidade daquela escarpa – em teoria, a mais parda das paisagens – podia funcionar como um bom exemplo do quanto uma fotografia pode ampliar a nossa experiência da realidade. Confirmei esta teoria inicial noutras imagens que, com esta, partilhavam uma tendência assumida para a hiper-representação das texturas, para uma ampla e clara profundidade de campo, para uma criteriosa construção compositiva e mesmo para uma aproximação episódica aos protocolos, aos efeitos e aos regimes visuais da pintura.
Até determinada altura, portanto, a minha relação com as obras da Catarina tinha por base uma espécie de fascínio formal, como se o espanto que os meus olhos devolviam às suas imagens não permitisse que me apercebesse do que para lá da superfície também era retratado. Uma outra imagem, contudo, quebrou essa alienação e começou a revelar o novelo de procedimentos, relações e recorrências temáticas que subjazem à prática da Catarina e que têm nesta exposição um novo e mais profundo desdobramento. Na referida imagem, um rapaz (o mesmo?) encontra-se deitado na relva, as suas costas voltadas para a câmara, o seu tronco nu polvilhado de pequenos sinais, como um mapa sem território. A qualidade da luz, a riqueza das texturas, o rigor compositivo e a alusão pictórica mantinham-se, mas o que se revelava agora era sobretudo o grau de intimidade em que esta(s) fotografia se apoiava e o modo como a gestão daquilo que se omite e do que é dado a ver promove uma espécie de curto-circuito na valência sugestiva da imagem, impedindo que a nossa atenção se dissipe ou resolva.
O facto de esta exposição ter ganho o título de Eclipse não será propriamente causal. De facto, muito do que aqui se apresenta, e do modo como se apresenta, tem a ver com esse fenómeno de ocultação que a ideia de eclipse sinaliza: um corpo que se interpõe, um outro que se fragmenta, uma sombra que tudo tolhe e o halo das coisas que se escondem e que, nessa condição, parecem brilhar mais forte. O esconder e o fragmentar do eclipse que aqui nos traz é fruto de um olhar treinado: de um olhar que sabe recortar de uma cena tudo e apenas aquilo que nos manterá interessados. Que sabe que esse interesse depende em absoluto de uma negação, de uma recusa em declarar imediatamente os seus verdadeiros intentos, e do efeito inverso que essa recusa provoca na imaginação. Quanto menos se vê, mais se imagina, e esse é um segredo que a Catarina sabe de cor.
É, muito provavelmente, por isso que tudo nesta exposição é deliberadamente parcial, truncado, dúbio. Está tudo (ou quase tudo) à distância de dois passos, essa medida que nem é demasiado perto para que tudo se torne abstracção, nem demasiado longe para que se torne descrição. É uma distância que nos põe no lugar do participante mais do que no lugar da testemunha e que nos deixa, assim, ao comando do veículo de sentido que o conjunto destas imagens fará. Entre a vista angulosa de uma janela partida, a simetria perfeita do pelo de um cavalo, um corpo reclinado sobre um leito incerto, o pára-brisas de um carro que espelha a cidade, o olhar cego de uma figura de gesso num paço senhorial – o quadro impressivo da sugestão a recordar-nos que a narrativa é mais intrigante quando se apresenta omissa, o olhar mais agudo quando não encontra o que procura, o sol mais ponderoso quando a lua se interpõe.
Bruno Marchand